INTRODUÇÃO
O presente artigo visa esclarecer, de maneira objetiva e simplificada, as dúvidas que muitos cidadãos possuem acerca da guarda de seus animais de estimação frente a um eventual término de relacionamento com seus atuais companheiros.
Essa dor, sentida por muitas pessoas, se justifica pela modificação da sociedade ao longo do tempo e a forma como os pets vem sendo tratados dentro das famílias brasileiras.
O número de animais dentro do seio das famílias brasileiras já vem superando o número de crianças desde o ano de 2013. Os dados coletados pelo IBGE em 2013 afirmam que de cada 100 famílias, 44 criam, por exemplo, cachorros e só 36 têm crianças de até doze anos.
Observem que estes dados são de 2013. De lá para cá, a densidade de animais dentro das famílias brasileiras aumentou ainda mais. Em 2019, foram registrados cerca de 139,3 milhões de animais de estimação no Brasil.
Por essa razão, o direito não pode continuar ignorando por muito tempo a necessidade de regulamentar essa situação, não apenas para alcançar uma segurança jurídica sobre o tema, mas também para adequar a legislação à realidade da sociedade atual.
É bem verdade que o direito evolui com mais lentidão que a sociedade, afinal, se pauta nela para realizar eventuais mudanças estruturais, mas esse tema já vem sendo discutido há alguns anos e os pais dos filhos de quatro patas precisam de mais certezas frente a um tema que aflige o íntimo dessas famílias multiespécie.
O QUE É, EM REGRA, A GUARDA COMPARTILHADA?
Antes de trazer o instituto da guarda compartilhada para a aplicação direta no que tange aos animais, precisamos explicar o que é o instituto, a fim de não criar mais dúvidas do que esclarecer.
A guarda compartilhada é a regra no direito brasileiro desde o ano de 2014, diante do tratamento de crianças e adolescentes dentro de uma família. Em suma, se trata do compartilhamento de responsabilidades na criação de um menor de idade, seja criança ou adolescente, através do exercício do poder familiar.
Os pais que detém a guarda compartilhada de um incapaz irão compartilhar as decisões sobre o futuro deste, escolhendo o melhor colégio, a melhor forma de educar, os profissionais que cuidarão da saúde daquela criança, dentre outros.
No entanto, a guarda compartilhada não quer dizer compartilhamento de tempo igual e alternância de residências, porque neste caso já estaríamos falando de outro instituto, da guarda alternada, que não tem aplicabilidade no direito brasileiro.
Na guarda compartilhada, além do compartilhamento de responsabilidades, os genitores poderão, de maneira harmônica, partilhar a convivência com a criança a fim de que ela conviva com ambos os pais, da maneira mais equilibrada possível.
Ocorre que, a criança é um sujeito de direitos segundo o ordenamento jurídico pátrio. O animal, por sua vez, é tratado de maneira completamente diferente, como veremos no tópico a seguir. Por esta razão, a aplicação do instituto da guarda compartilhada e a tramitação dessas questões nas Varas de Família ainda causam certa polêmica.
COMO SÃO VISTOS OS ANIMAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO?
Os animais ainda são tratados pelo Código Civil como coisas, sendo chamados de bens móveis semoventes. O CC/02 se limita a dizer que os animais são objetos destinados à circular riquezas, servem para garantir dívidas e é estabelecida a responsabilidade civil do seu proprietário. Dessa forma, não existe qualquer consideração no código sobre os animais serem sujeitos de direito ou, ainda, de serem parte integrante de uma família.
No entanto, cada vez mais os casais, ao terminarem um relacionamento, passam a disputar a guarda dos animais domésticos que possuíam em conjunto, o que fez com que a doutrina e a jurisprudência precisassem começar a ser posicionar sobre o tema.
Destaque-se, de logo, que os pets domésticos não se confundem com outros tipos de animais, ainda reconhecidos como “coisas” e que, por esta razão, continuam sendo tratados como bens dos seus proprietários.
De algum tempo para cá, surgiu um termo interessante no que tange ao tratamento dos animais domésticos, sendo então classificados como seres sencientes (coisas sensíveis), que possuem capacidade cognitiva, sentem emoções e formam, com seus donos, as chamadas famílias multiespécie.
O STJ, inclusive, já possui decisões no sentido de entender que os animais não podem ser comparados com qualquer outro tipo de propriedade, pois afloram sentimentos profundos em seus donos. Sabe-se que muitas pessoas, nos dias atuais, optam por não terem filhos e acabam tratando seus animais de estimação como se filhos fossem.
O ENTENDIMENTO DO STJ NO RESP 1713167 SP 2017/0239804-9
No ano de 2018, o STJ julgou um Recurso Especial no sentido de manter a sentença que já havia sido arbitrada pelo juízo a quo. O Tribunal de origem havia reconhecido a relação de afeto existente entre o ex-companheiro e o animal de estimação, reconhecendo o seu direito de visitas (convivência) com o animal.
Nas palavras do Ilustre Ministro Relator Luis Felipe Salomão, “os animais de companhia possuem valor subjetivo único e peculiar, aflorando sentimentos bastante íntimos em seus donos, totalmente diversos de qualquer outro tipo de propriedade privada. Dessarte, o regramento jurídico dos bens não se vem mostrando suficiente para resolver, de forma satisfatória, a disputa familiar envolvendo os pets, visto que não se trata de simples discussão atinente à posse e à propriedade”.
O Ministro ainda salienta a senciência dos animais de companhia, que são dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais e devendo, portanto, também ter o seu bem-estar considerado.
No caso concreto, se tratava de uma cadela adquirida na constância da união estável, restando demonstrada a relação de afeto entre o ex-companheiro e o animal de estimação.
DA COMPETÊNCIA DAS VARAS DE FAMÍLIA PARA JULGAR QUESTÕES ENVOLVENDO ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO
Nas palavras da Ilustre Doutrinadora Maria Berenice Dias, no que tange à aplicação do instituto da guarda para tratar de animais, “a guarda é um instituto que trata da posse de fato de pessoas incapazes. Mas, em face da semelhança com o conflito sobre a convivência com os filhos, possível a aplicação analógica dos mesmos dispositivos legais” (DIAS, 2020, 411).
Conforme já citado em tópico anterior, atribui-se o termo família multiespécie para aquelas famílias que, como o próprio nome já diz, são formadas por humanos e animais, diferentes espécies convivendo como se família fossem. Dessa forma, utilizando-se da aplicação analógica, quando existe o término do casamento ou da união estável, é a Vara de Família que deverá julgar a questão.
Insta salientar, inclusive, que o IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) dispõe em seu Enunciado 11 que “na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal”.
Ou seja, utiliza-se, em verdade, a palavra CUSTÓDIA compartilhada para designar como ficará a convivência com o animal após a separação do casal.
Neste momento, inclusive, além da convivência com o animal, deverá ser estabelecido o pagamento de verbas de natureza alimentar, haja vista o pet necessitar de cuidados como ração, tosa, vacinas, consultas veterinárias e eventuais necessidades, como cirurgias, que possuem valores que, em muitas oportunidades, se equiparam com os valores dispendidos para sustentar um filho humano.
COMO ACONTECE NA PRÁTICA A DIVISÃO DA GUARDA DOS ANIMAIS?
Na prática, o compartilhamento de tempo vai variar de acordo com o caso concreto e com a disponibilidade dos ex-companheiros. Nesse sentido, podemos analisar uma famosa decisão perfilhada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 2015 (AC 0019757-79.2013.8.19.0208) acerca do cachorrinho “Dully”.
No caso, o animal teria sido um presente do ex-companheiro para a ex-companheira após a mesma sofrer um aborto natural. Dessa forma, foram construídos vínculos emocionais e afetivos com o cachorro, os quais, através do entendimento do juiz no caso concreto, deveriam ser mantidos com ambos os donos.
Na decisão, o Relator Marcelo Lima Buhatem destaca que se trata de um “semovente que, por sua natureza e finalidade, não pode ser tratado como simples bem, a ser hermética e irrefletidamente partilhado, rompendo-se abruptamente o convívio até então mantido com um dos integrantes da família”.
Na prática, foi permitido ao ex-companheiro buscar o cão em fins de semana alternados, das 10h do sábado até as 17h do domingo.
Neste ponto, merece destaque a diferença do convívio no que tange aos princípios da guarda compartilhada. Em face do compartilhamento de cuidados e de tempo, o termo guarda compartilhada vem sendo amplamente utilizado para se referir aos animais de estimação. No entanto, o instituto quando aplicado a um filho humano não se apresenta desta maneira.
O caso concreto, em verdade, no que diz respeito ao tempo de convívio, mais parece uma guarda unilateral com regulamentação de convivência do que uma guarda compartilhada em si.
No entanto, o objetivo do ex-companheiro de continuar vendo o animal, interagindo e tendo-o em sua companhia, ainda que em fins de semana alternados, foi estabelecido. Nestes casos, diferentemente do que acontece com os filhos humanos, a guarda e as visitas devem ser estabelecidas de acordo com o interesse das partes e não do animal, pois o afeto tutelado é o das pessoas envolvidas.
DO PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 542, DE 2018
Desde o ano de 2018, tramita na CCJ do Senado o Projeto de Lei nº 542, que dispõe sobre a custódia compartilhada dos animais de estimação nos casos de dissolução do casamento ou da união estável.
Esse projeto estabelece o compartilhamento da custódia de animal de estimação de propriedade em comum, quando não houver acordo na dissolução do casamento ou da união estável. Altera o Código de Processo Civil, para determinar a aplicação das normas das ações de família aos processos contenciosos de custódia de animais de estimação.
A autora da proposta é a senadora Rose de Freitas, que ressalta o crescimento exponencial de animais de estimação dentro dos lares brasileiros em detrimento do nascimento de novas crianças ao longo dos últimos anos. Além disso, o Projeto de Lei se baseia na resolução do IBDFAM, citada no tópico 3.2.
O Projeto dispõe, ainda, sobre a divisão das despesas dos pets. As despesas ordinárias de alimentação e higiene incumbirão àquele que estiver exercendo a custódia, enquanto as demais despesas de manutenção, como as consultas veterinárias, internações e medicamentos serão divididas igualmente entre as partes.
Além disso, o texto prevê quatro hipóteses de perda da posse do animal em favor da outra parte, são elas: descumprimento imotivado e reiterado dos termos da custódia compartilhada; indeferimento do compartilhamento da custódia em casos de risco ou histórico de violência doméstica ou familiar; renúncia ao compartilhamento da custódia por uma das partes; e comprovada a ocorrência de maus-tratos contra o animal.
A importância desse Projeto de Lei ser aprovado para a segurança jurídica acerca do tema é inconteste. Conforme dito durante todo este artigo, existem muitos casais que acordam, durante a separação, sobre a disposição de todos os bens, menos dos animais de estimação, que viram objeto de litígio.
Existindo Lei no sentido de estabelecer a custódia compartilhada dos animais de estimação em caso de dissolução de casamento ou união estável, estará assegurada a segurança jurídica no que diz respeito ao tema, fazendo com que as famílias multiespécie já estejam orientadas pela legislação do que poderá ser feito após o término de relacionamento, deixando os ex-companheiros mais tranquilos com relação à convivência com o animal.
CONCLUSÃO
Conclui-se, diante de todos os argumentos aqui trazidos, que é imperiosa a aprovação do Projeto de Lei nº 542 para afirmar a importância dos animais de estimação no seio das famílias multiespécie e trazer mais segurança jurídica para o tema.
De qualquer sorte, a doutrina e jurisprudência já estão alinhadas no que tange à competência das Varas de Família para apreciação das questões envolvendo animais domésticos.
O entendimento perfilhado pelo STJ no RESP 1713167 SP 2017/0239804-9 foi de grande importância para pacificar ainda mais a questão, demonstrando que o Superior Tribunal de Justiça se alinha com a tese majoritariamente defendida pela doutrina.
Ademais, apesar da sociedade evoluir em ritmo muito mais avançado que o direito, parece que, finalmente, estamos próximos de atualizar mais uma vez as Leis que regem o país, no intuito de incluir o compartilhamento de custódia dos animais de estimação, que figuram como verdadeiros filhos em grande parte dos lares brasileiros.
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